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Sobre propósito e novos caminhos

por:

Caroline Verre

Caroline Verre

A necessidade de encontrar modelos mais inclusivos e sustentáveis já vem sendo anunciada por ativistas, empreendedores e cientistas do mundo inteiro. Nesse grupo de inovadores globais, Eduardo Shimahara se destacou pela visão singular do uso educação e da colaboração como ferramentas de impacto social e econômico. Um dos fundadores da Ânima Educação, grupo do qual HSM faz parte, Shima, como era carinhosamente conhecido, nos deixou na última quarta-feira (dia 22).

Com passagens pela Suécia, Espanha, Inglaterra, Indonésia, Argentina e Índia, Shima foi criador e participante de inúmeros projetos educacionais voltados à inclusão social, muitos deles reunidos no livro ‘Volta ao mundo em 13 escolas”. Nos últimos anos, se dedicou a iniciativas de ativismo e transformação social na África do Sul, país que tinha como lar desde 2013, com a filha Zoe e o filho Elliot.

Em homenagem à sua jornada, publicamos abaixo o texto escrito para a revista HSM Management #122, em parceria com Sandra Chemin, no qual ele compartilha sua visão sobre uma era de mudanças cada vez mais necessária para a sociedade, a economia e os negócios. 

Do lado de baixo do Equador

Vivemos uma era de mudança de paradigma. Duas em cada três pessoas pretendem deixar seus empregos, segundo pesquisa da consultoria Deloitte com millennials de 29 países. E o choque entre os valores pessoais e o comportamento das empresas em que trabalham é um dos responsáveis por isso.

As práticas de gestão que nos trouxeram até aqui não são páreo para a complexidade sistêmica dos desafios a nossa frente. Para as soluções, precisamos de um paradigma diferente daquele que gerou os problemas. Paralelamente à tão comentada revolução exponencial tecnológica, é hora de uma revolução exponencial também nas relações humanas.

Isso fica evidente quando se fala de propósito. Ao colocar o propósito no centro da estratégia de negócio, as empresas deparam com novos desafios: para o propósito ser verdadeiro, ele tem de fazer sentido para quem trabalha; é preciso haver consciência do propósito individual e como ele se conecta com o propósito coletivo. Isso exige das organizações práticas colaborativas e modelos descentralizados de gestão.

Como aprenderemos a fazer isso? Nossa aposta é que nós, que estávamos acostumados a olhar para o hemisfério norte em busca de inspiração, precisaremos começar a olhar para a região abaixo da linha do equador. É no hemisfério sul do planeta que estão surgindo as práticas mais colaborativas, os modelos descentralizados de gestão e os negócios orientados por propósito, embora ainda sejam relativamente pouco divulgados. Gestores e empresas do mundo inteiro começam a pesquisar países como Nova Zelândia, África do Sul e Brasil e seus experimentos sobre um novo jeito de trabalhar e de viver.

Nova Zelândia, um país com propósito

“Como podemos operar de modo sustentável?” Essa foi a pergunta que os irmãos Matthew e Brian Monahan, empreendedores do Vale do Silício, se fizeram cinco anos atrás ao vender sua startup e escolher a Nova Zelândia como o lugar onde buscar respostas.

Os Monahan criaram a organização Kiwi Connect e o festival New Frontiers para unir pessoas do mundo todo interessadas em construir novas economias regenerativas para a sociedade. O intenso intercâmbio de conhecimento decorrente disso (que incluiu levar o chefe de imigração neozelandesa para visitar o Vale do Silício) deu origem a um movimento que olha para os maiores desafios da humanidade e reflete sobre qual o papel da Nova Zelândia no mundo hoje.

Em janeiro de 2017, o governo neozelandês lançou o Global Impact Visa, o único visto no mundo para atrair empreendedores e investidores que queiram desenvolver negócios de impacto global a partir da Nova Zelândia. Para criar um ecossistema de apoio a empreendedores conscientes que fosse a um só tempo local e global, foi fundada a Edmund Hillary Fellowship, parceria entre o governo neozelandês, a Kiwi Connect e a Edmund Hillary Foundation. Quando um país resolve mudar seu sistema de imigração para abraçar um propósito – o de resolver os maiores desafios da humanidade –, é sinal de que os paradigmas estão mudando. E a Nova Zelândia começa a ser apelidada de “Vale do Silício do propósito”.

Pioneira em novos modelos de empreendedorismo em rede, a Enspiral simboliza bem esse cluster de inovação diferenciado. Nascida do encontro de empreendedores digitais e ativistas, trata-se de uma rede global de 250 profissionais cujo propósito é aumentar o número de pessoas trabalhando naquilo que realmente importa. Nos últimos anos, a Enspiral fundou startups que combinam práticas sociais com tecnologia de ponta para criar uma cultura participativa no mundo.

Entre as startups em funcionamento está o Loomio, uma plataforma de tomada de decisão distribuída e assíncrona que ganhou o mundo. Sua ferramenta já é usada por 32 mil grupos em 93 países. Outra empresa da rede é o Human Methods Lab, que pesquisa e desenvolve práticas de colaboração e de liderança descentralizada. “Quanto mais conhecemos as habilidades de nossos pares e confiamos em sua competência, mais serena é a passagem do bastão e mais fluido o processo da liderança líquida”, explica o brasileiro Lucas Freitas, sócio do Human Methods Lab. E uma futura startup da Enspiral nascerá em torno do Co-budget, ferramenta de orçamento participativo em que todos podem propor projetos e escolher em que iniciativas investir.

Não é só com os “produtos” de suas startups que a Enspiral mostra seu propósito, contudo; o jeito como ela funciona é totalmente novo. Por exemplo, ela se estruturou para ser uma organização de alta confiança – sem hierarquia, na qual os líderes deixam de ser chefes para se tornar facilitadores. Organizou-se assim porque sabe que hoje é mais importante fazer as perguntas certas do que ter respostas, mas estas dependem de uma equipe confiável.

A Enspiral também realiza, a cada seis meses, retiros com seus membros, com o objetivo de criar relacionamentos e aprofundar temas que não têm espaço no dia a dia – uma nova maneira de pensar e agir condizente com a cultura participativa.

Diversidade na África do Sul

É um erro acreditar que o continente africano se resume a clichês como caça ilegal de leões, crianças famintas e conflitos tribais. A Cidade do Cabo, na África do Sul, que foi eleita em 2014 a capital mundial do design, além de escolhida como destino número um do mundo pelo New York Times, impressiona pela pluralidade. Combina infraestrutura turística e serviços europeus com pobreza de terceiro mundo, em um cenário único de diversidade cultural – são 11 diferentes idiomas oficiais, por exemplo.

Um simples passeio à beira-mar permite conferir esses contrastes, que fertilizam um rico ecossistema empreendedor norteado por propósitos.

Alguns empreendedores respondem, por exemplo, à violência. É o caso de Sheryl Ozinsky, que, em 2013, acordou em uma manhã de domingo com uma arma apontada em sua direção. O trauma do assalto em sua casa alavancou a busca de um projeto que tornasse o lugar melhor. Então, transformou um sítio abandonado em seu bairro, com uma sede histórica, em uma fazenda urbana, a Oranjezicht City Farm (OZCF). A pequena feira de produtos orgânicos colhidos em sua horta deu origem a um bem-sucedido mercado de fazendeiros locais instalado no Water Front, ponto turístico da Cidade do Cabo. A fazenda já fatura o equivalente a US$ 1 milhão anuais, oferece projetos de educação à comunidade e é referência na produção de comida em áreas urbanas de todo o mundo.

A Oranjezicht também difunde globalmente um conceito poderoso: “local is lekker” (local é legal). O brasileiro Alexandre Moreno, sócio-fundador da empresa de educação corporativa Syntese, vibrou ao visitar a fazenda em maio último: “Fortalecer a produção local não é uma questão semântica apenas; é questão de alma”.

Outros empreendedores são movidos pela pobreza, como o fato de que 34% da população de áreas rurais da África não tem acesso a bancos – e, segundo o Banco Mundial, isso ocorre principalmente porque essa mesma parcela não tem acesso à internet e, assim, não consegue disponibilizar as informações necessárias para uma análise de crédito.

Foi esse quadro complexo que inspirou Andrew Watkins-Ball a criar a plataforma de crédito Jumo na África do Sul. “Os bancos não têm informações sobre essas pessoas porque elas não estão online. Mas, embora não sejam mercados online, estes são mercados mobile, porque tais pessoas têm celular”, explicou Watkins-Ball, CEO da Jumo, ao portal The Next Web.

Eles criaram um algoritmo que gera uma análise da confiabilidade de crédito dos usuários com base no uso dos celulares e, assim, lançaram um mercado novo. Com meses de operação, a plataforma facilitou o processo de 6 milhões de empréstimos para 2,25 milhões de pessoas e hoje gerencia entre 30 mil e 50 mil empréstimos por dia de valor médio de US$ 10. O próximo passo é a expansão para Ruanda, Uganda, Gana, Nigéria e Sudeste Asiático.

Horizontalizar no Brasil

Uma importante contribuição brasileira para a gestão com propósito é a compreensão de que para o propósito ser verdadeiro as pessoas precisam ter voz. Isso se reflete em um modelo de gestão horizontal, sem chefes e sem hierarquia. Dois casos já tratados em HSM Management, o da empresa de soluções tecnológicas de recrutamento e seleção Vagas (edição nº 95) e o da fabricante de artigos de borracha Mercur (edição nº 104), dariam um curso sobre o assunto.

Na Mercur, a decisão de envolver o maior número possível de pessoas nas decisões veio com a clareza de que novas habilidades de relacionamento são fundamentais, como explicam Breno Strussman, seu diretor-geral, e Jorge Hoelzel Neto, acionista e membro do board. A transformação ali incluiu a criação de espaços de aprendizado, experimentação e legitimação de ideias e de um plano educacional inspirado no educador Paulo Freire.

A Vagas fez uma ligação direta entre seu propósito e seu modelo de gestão horizontal, que é baseado em consenso. “Nenhum propósito ganhará vida em uma organização se as pessoas não participarem das decisões”, diz seu fundador, Mário Kaphan.

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