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Gênero: estatísticas socialmente construídas

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O Sindicato dos Administradores do Estado do Paraná (SINAEP) me enviou por três anos uma proposta de plano de saúde. A última que recebi foi em abril de 2019. Mesmo assim, quero utilizar este exemplo, para demonstrar como a forte discriminação de gênero ainda vive presente nas organizações. Por um lado, causando invisibilidade das mulheres que já ocupam cargos de gestão. Por outro, transformando estatísticas socialmente construídas em justificativas para sustentar as diferenças entre homens e mulheres. Elas transformam o determinismo cultural em biológico e nutrem a ultramasculinização da liderança.

Vieses e discriminação

Quero iniciar convidando vocês, queridos leitores e leitoras, para observar esta proposta enviada para pessoas, que como eu, são formadas em administração de empresas.

Quais informações com respeito às mulheres te causam desconforto nesta proposta? O que te impacta e surpreende?

Imagino que como eu, você ficou chocada(o) com esta proposta ao identificar que estão propondo planos de saúde somente para o administrador, considerando-o como único trabalhador e comprador. Além disso, à mulher resta exclusivamente o papel de cônjuge dependente, a esposa.

Temos aqui, pelo menos, dois vieses de uma construção social de gênero hierarquizada.

O primeiro deles perpetua o homem como único provedor das famílias e sua esposa sempre como a dependente.

Quando as organizações comunicam seus produtos e serviços colocando unicamente homens como trabalhadores e provedores e mulheres na condição de suas dependentes, estão afirmando que o lugar da mulher se restringe à esfera doméstica. Afirmam que sua viabilidade como ser humano depende do sucesso financeiro de um homem. Transformam-na em um ser humano incapaz de assegurar sua sobrevivência.

Chamar a atenção de vocês para este fato não é mimimi. É trazer o viés inconsciente para o nível consciente e convidar para uma reflexão. A inclusão das mulheres no mundo corporativo de forma justa depende de uma evolução deste mindset.

Possibilitar a consolidação de carreiras que permitam uma representatividade destas em todos os níveis de liderança, espelhando proximidade com sua participação na sociedade, prescinde desta evolução cultural. Hoje as mulheres representam no Brasil e no mundo em torno de 51% da população. Seria justo que em todas as esferas encontrássemos esta mesma proporção. Isto depende da mensagem que é enviada na infância, na adolescência e na vida adulta por meio, entre outros, da família, das escolas, universidades, governos e das organizações.

As consequências deste viés se verificam, pelo menos, em dois níveis:

• No olhar que os homens atribuem para as mulheres nas organizações, pois ao invés de as perceberem como reais colegas de trabalho com a possibilidade de serem suas líderes, olham para elas como uma força de trabalho menos valorizada e que só ocasionalmente e excepcionalmente serão líderes. A prioridade delas é a casa, o marido e os filhos. Afinal, elas cuidam destas questões, como suas próprias esposas o fazem, para que eles, os homens, cuidem das suas carreiras. Como ouvi de um colega uma vez

“Vera, acabo de perceber que apesar de te admirar muito, gostar muito de você, eu jamais me casaria com uma mulher como você. Para mim é muito conveniente ter em casa a Maria cuidando da minha vida e dos nossos filhos, isso me deixa livre para cuidar dos meus projetos.”
Este mesmo homem escreve esta proposta, pois pensa na sua esposa como dependente dele.

• Na subjetividade das mulheres, pois dificulta a construção da sua auto-estima e a visão sobre si mesma. Para lutarmos pela realização de um sonho, precisamos visualizar e desejar. Quando as publicidades para vender produtos e serviços sempre nos mostram como dependentes, fica bem difícil de se imaginar em posições de alta responsabilidade, dirigindo, motivando e desenvolvendo pessoas, desenhando estratégias e capaz de assumir altas responsabilidades. O efeito desta falsa realidade, imposta pela hierarquização na relação entre os gêneros, determina que as mulheres ocupem as posições menos remuneradas e mais vulneráveis. A perda na participação com a crise econômica agravada pela covid-19 deixou evidente que as mulheres são as mais atingidas. Segundo dados do IBGE, no segundo trimestre de 2020, a representatividade das mulheres na força de trabalho caiu para 46,3%. Este é o menor número desde 1990, quando o índice foi de 44,2%. Desde 1991, o índice não caía abaixo de 50%.

Confesso que pessoalmente fiquei bem confusa ao receber esta proposta. Afinal, descobria que apesar de formada pela EAESP-FGV, com mais de 25 anos de carreira como executiva no Grupo Renault na França, eu era inexistente. Precisaria me tornar homem para ter direito ao título de Administrador. E, meu marido na época, era uma fraude como meu dependente do plano de saúde!

O segundo deles envolve a questão da inviabilização dos casais homossexuais.

Exemplos de comportamentos como este, demonstram quão difícil é, neste caso, para um homem, revelar sua homossexualidade com um entorno que explica para ele todo dia que ele precisa de uma esposa. Também fica difícil de lutar pelos seus direitos de ter um plano de saúde para seu parceiro. Vale lembrar que data de 2010 a súmula normativa publicada pela ANS no Diário Oficial da União, que obrigou todas as operadoras a adotarem orientações para incluir como dependentes parceiros(as) de casais homossexuais.  Esta alteração se baseou no Código Civil Brasileiro e na Constituição Federal que cita como objetivos fundamentais “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Ora, esta proposta é de 2019.

A ultramasculinização e as estatísticas

EAGLY e CARLI, debatem amplamente a questão da ultramasculinização no artigo Women and the Labyrinth of Leadership publicado pela Harvard Business Review, em 2007.

Em minha dissertação de mestrado esta questão foi analisada de forma detalhada com um estudo de caso que deu origem ao artigo Representatividade das mulheres na hierarquia de empresas: estudo de caso com base no women’s empowerment principles. Cujo conteúdo se tornou um artigo em parceriacom meu querido Professor José Henrique de Faria publicado na RECADM em janeiro de 2020.

Desta forma, passo diretamente para a questão da estatística socialmente construída.

Fiquei pelo menos 3 anos com uma questão que era para mim muito obscura. Imagino que, como eu, vocês também repararam que o filho custava mais caro que a filha, respectivamente R$ 132,05 e R$ 116,17.

Eu passei estes anos todos me interrogando sobre o que justificava esta diferença em um plano de saúde e, sobretudo, o homem valer mais do que a mulher. Com minha autoestima abalada pela masculinização evidente da minha profissão, o que poderia ser uma desvantagem, custar mais caro, se tornava uma valorização na minha equação. E eu tinha razão! Descobri a resposta em um dos meus workshops em agosto de 2019.

Eu passei a utilizar a foto desta proposta como uma forma de provocar reflexão quando trato do tema em empresas. Foi somente quando fiz um workshop em uma empresa de seguros que pude entender como este valor foi construído e também como ele dava suporte para que as pessoas acreditem que o resultado de um determinismo cultural é biológico.

Ingenuamente, após a rica discussão sobre a discriminação do título e a ausência de esposo na proposta, eu digo: “temos aqui um mistério que ainda estou incapaz de resolver, nada encontrei em meus estudos que justifique a diferença de valor entre meninos e meninas”.

A resposta foi cruel e maravilhosa:

“Nós temos a resposta: biologicamente meninos são diferentes de meninas, eles se arriscam mais, se jogam mais, brigam mais pelo que querem e consequentemente se machucam mais e frequentam mais os hospitais, assim assegurá-los custa mais caro.”

Cruel, pois afirmava novamente que existe uma diferença comportamental entre homens e mulheres por determinismo biológico quando esta é cultural. Maravilhosa, por abrir a porta para mais um caminho de expansão da consciência sobre o tema.

Respirei fundo e lembrei que o fato de ser uma mulher, ter feito tudo isso quando criança e ter cicatrizes como eles, seria insuficiente para convencê-los de que estavam falando de uma estatística socialmente construída. Isto a tornava inviável como prova para justificar esta diferença entre meninos e meninas. Entendi que o momento me apresentava uma oportunidade incrível para levar o grupo a refletir sobre a educação e como ela estava associada a construção desta estatística.

O que dizemos para meninos e meninas na infância que causam esta diferença?

Para meninosPara meninas
Não chora, mostra que você é corajoso!Tadinha, vem cá que a mamãe cuida do seu dodói.
Menino não tem medo, vai lá e pula!Cuidado, não brinca assim vai rasgar seu vestido.
Menino é corajoso, nunca deixe alguém te ofender, vai lá e briga!Se alguém fizer algo para você, chama seu irmão para te defender.
Abre o peito!Fecha as pernas.
Vai lá! Ganha o jogo, você é capaz!Cuidado! não vai se machucar.
Vai lá! Corre atrás da bola, você pode ganhar!Cuidado, não vai sujar seu vestido, menina precisa estar sempre bonita.

Fato é que, ao menos para este grupo, ficou evidente que esta estatística é construída socialmente pela maneira como educamos meninas e meninos.

Às meninas, pedimos para se resguardarem.

Os meninos, os impulsionamos para correrem riscos, os estimulamos para se desafiarem e confiarem no resultado.

Isto, além de criar uma falsa estatística sobre diferenças determinadas biologicamente entre meninos e meninas, contribui com a consolidação ou não da auto estima necessária para se galgar postos de liderança.

Nos meninos fortalecemos. Consequentemente, quando adultos se arriscam, sonham e constroem carreiras de liderança.

Nas meninas destruímos. Consequentemente, provocamos na vida adulta das mulheres a Síndrome da Impostora na vida profissional. Além de uma busca constante pelo ideal de beleza determinado pela moda.

Espero que esta reflexão também provoque em vocês, caras leitoras e leitores, uma evolução na forma de educar filhos e filhas para promover um mundo com mais igualdade de direitos e deveres.

Aproveito para recomendar dois documentários essenciais para pais e mães que querem entender esta construção social: Miss Representation de 2011 e The Mask You Live In de 2015.

Eles também são muito educativos para líderes que querem entender os #DesafiosSistêmicos que assolam as mulheres quotidianamente em função desta construção social! Gostaria muito que Yoshiro Mori, ex Primeiro-Ministro do Japão e atual Presidente do Comitê Tóquio 2020 tivesse visto estes documentários. Quem sabe, teria evitado suas declarações machistas sobre a presença feminina em reuniões feitas no dia 3 de fevereiro deste ano: “mulheres competem para falar mais e são irritantes”, “as que trabalham no Comitê sabem ficar em seu lugar” e de dizer que não podia comentar a participação das mulheres nas reuniões uma vez que não as escuta.

Pacto Global e empresa signatárias

Este é também, mais um exemplo, da distância entre os princípios com os quais as empresas se comprometem e a realidade que praticam.

A operadora de saúde que me enviou a proposta é signatária do Pacto Global desde 2003. Esta organização se comprometeu com a agenda positiva da ONU para lutar contra discriminação pelo gênero. Comprometeu-se com todos os princípios do Pacto Global, dentre eles o 6° que defende a Eliminação da discriminação no emprego. Também se engajou com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, dentre eles o de n° 5 que visa alcançar a Igualdade de Gênero e empoderar todas as mulheres e meninas.  

Fica a dica para consumidores irem além do que dizem as organizações na imprensa. É necessário investigar além da adesão aos compromissos, é preciso verificar o que fazem realmente e cobrar ações efetivas.

Como diz Verna Myers, “Diversidade é Convidar para a festa, Inclusão é chamar para dançar!”

Convidar para dançar é trabalhar a cultura organizacional para sairmos do politicamente correto e ter verdadeira intenção de incluir mulheres como colegas de trabalho.

Vera Regina Meinhard é administradora pela EAESP – FGV, mestra em Sustentabilidade e Governança com artigo publicado em 2020 na RECADM sobre “A representatividade das mulheres na liderança”. Tem especialização no PIM na HEC e no Diversity Program da INSEAD na France. Possui 25 anos de vivência internacional em cargos de liderança (França, Brasil, Argentina, Chile) no Groupe Renault France. Desde 2011 se dedica ao desenvolvimento humano como coach, mentora, facilitadora, palestrante, educadora e consultora cultural com o Barrrett Model

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